Eu
gosto muito do estilo da Martha Medeiros. Estilo de escrever. Para uma mulher
dizer isso, é quase desnecessário. Porque ela escreve sobre nossos sentimentos
(mas ela fala também para homens, se liga) e da forma como em geral, pensamos
sobre esses sentimentos e tudo que envolve eles.
Ela,
além de ser mulher, tem alma feminina. Acho que por isso ela tem tanto sucesso.
Ela escreve para e das mulheres. E também por isso, homens a lêem.
Não
estou dizendo que todas as mulheres pensam exatamente assim, e que ela sempre
acerta. Mas olha, acho que na maioria das vezes, acerta sim.
Inspiro-me
em seu estilo, para escrever. É o estilo que chamo “a pena transporta a alma”. Substitua
pena para caneta, teclado, touch. Tanto faz. Escrever desnudando a alma.
Pois
de alguns textos que li dela (e li vários alguns), acredito que não esquecerei
o desse domingo, ACONTECEM COISAS (transcrevo abaixo 1) e nunca esqueci o A
MOÇA DO CARRO AZUL (transcrevo abaixo 2).
Não,
nunca tive um carro azul. Mas já fiz disso: Chorar dirigindo. Ou dirigir
chorando. Dirigir é quase uma terapia, para euzinha. Para “mim”. Para “eu”.
Para Dóris, enfim. Se não fosse um carro azul, diria que fui eu (epa, agora
lembrei que meu primeiro carro, um modelo Volks/Gol, foi azul. Oh oh, diria meu
sobrinho, engolindo em seco).
E
o ACONTECEM COISAS... nossa. Nossa-nossa. Saiu da minha alma. Ou entrou nela.
Exatamente
isso. Que. Acontece. O. Tempo. Todo. E. Especialmente. Quando. Abrimos. Os.
Olhos. Da. Alma = Sincronicidade.
ACONTECEM
COISAS
Acontecem
coisas todos os dias. Quem tem medo de já ter envelhecido não imagina os
ineditismos que ainda estão por vir. Quem é jovem e não vê perspectiva se
surpreenderá com o que vai encontrar logo adiante. Quem tem uma rotina
aborrecida não está enxergando direito. Acontecem coisas todos os dias, basta
prestar atenção.
Coisas
acontecem quando menos se espera, que é o momento preferido dos acontecimentos.
Você está retocando o esmalte e entra uma mensagem surpresa no Whatsapp. Você
está saindo do mar e encontra uma pessoa que não via faz tempo. Você está
parado num sinal fechado e um garoto entrega um folheto com a informação que
você buscava.
Você está
tendo uma conversa banal com sua mãe e ela diz aquilo que você não queria
ouvir, mas precisava.
Todos os
dias alguma coisa faz você pensar o que ainda não havia pensado, faz você
escolher pelo que ainda duvidava, coloca um rosto desconhecido bem em frente ao
seu. Você compra uma revista, e a reportagem de capa sugere uma ideia, você
escuta uma música no rádio e a lembrança de alguém invade a sala, uma promoção
na internet faz você decretar: é agora.
Mesmo que
você esteja numa fase em que nada parece tão estimulante quanto dormir, em
alguma hora do dia, desperto, o que enxergar da janela fará você pensar no que
ainda não havia pensado, e o barulho da chuva poderá emocionar por nada.
Por outro
lado, acordando cedo e tendo 16 horas pela frente, vai dar vontade de comprar
uma bobagem no meio da tarde, de ligar para um amigo, de marcar aquele
churrasco, de procurar aquela mulher, de cortar a barba, de alternar as ruas
onde costuma levar o cachorro para passear – e por estas mínimas experiências
casuais a vida pode mudar, porque coisas acontecem quase sempre por causa de
detalhes, de mínimos desvios do cotidiano.
Aquele disco
que estava no fundo de uma gaveta e que você resolveu ouvir depois de sete anos
sem escutá-lo é uma coisa que acontece. Ter dito para seu filho algo que você
nunca gostaria de ter verbalizado é outra coisa que acontece. E, desses
pequenos quase nadas, começa o início de algo ou o fim de uma etapa, mesmo que
na hora ninguém perceba.
Porque as
coisas acontecem sem que sejam festejadas, às vezes nem ao menos percebidas. No
entanto, cada minuto que passa indica que a vida se modifica.
Acontecem
coisas todos os dias. Você estava indo ao cinema sozinho e na fila ganhou
inesperada companhia. A conversa trivial virou declaração. As peles se roçaram
sem querer. Bateu saudade de uma sensação já esquecida. Seus olhos brilharam
mais do que deviam. Você se apaixonou. Você se deu conta. Ninguém hesitou. Você
nem esperava que fosse hoje, muito menos agora, mas essas coisas não avisam. Acontecem.
A MOÇA DO
CARRO AZUL (publicado em 2005)
Era
a semana que antecedia o Natal. Os carros entupiam as ruas, todos querendo
aproveitar um sinal verde, uma vaga para estacionar, chegar mais cedo ao
shopping. Eu era apenas mais uma no trânsito, quase sem olhar para os lados,
concentrada em alguma tarefa inadiável. Mas de repente o que era movimento e
pressa à minha volta parou.
Estava fazendo o retorno numa grande avenida quando passou por mim um carro azul com uma moça na direção. O vidro dela estava aberto e ela não parecia ter nada a esconder: chorava. Não um choro à toa.
Ela chorava por uma dor aguda, uma dor de respeito, era um transbordamento. Passou reto por mim e eu concluí meu retorno, e quis o destino que a próxima sinaleira fechasse e alinhasse nossos dois carros, eu ao volante do meu, atônita, ela ao volante do dela, desmoronando.
Eu deveria ter ficado na minha, mas era quase Natal, e quase todos estão tão sós, quase ninguém se importa com os outros, e antes que trocasse o sinal, abri a janela do meu co-piloto - sem nenhum co-piloto - e perguntei: "Você precisa de ajuda?"
Ela estava com a cabeça apoiada no encosto do banco, olhando em frente pro nada, chorando ainda. Então virou a cabeça lentamente para mim - pensei que iria dizer para eu me preocupar com a minha vida - e disse serenamente: "Já vai passar". E quase sorriu.
Eu respondi "fica bem", fechei o vidro e avancei meu carro um pouquinho pra frente, para desalinhar com o dela e deixá-la livre dos meus olhos e da minha atenção.
Passei o resto do trajeto tentando adivinhar se ela havia rompido uma relação de amor, se havia perdido um filho recentemente, se havia recebido o diagnóstico de uma doença grave, se havia discutido com o marido, se estava com saudade de alguém, se estava ouvindo uma música que a fazia lembrar de uma época terrível - ou sensacional.
O que a fazia chorar quase ao meio-dia, numa avenida tão movimentada, sem nem mesmo colocar óculos escuros ou fechar o vidro? Que desespero era aquele sem pudor e por isso mesmo tão intenso?
Garota, desculpe invadir com minha voz a sua tristeza. Era quase Natal e eu não aguentei ver você naquele quase deserto, num universo à parte, incompatível com a quase euforia com que recebemos as viradas, as mudanças, a esperança de olhos mais secos.
Faz uma semana, lembra? E agora falta quase nada pra gente abraçar a ilusão de que tudo vai ser novo. Que seja mesmo, especialmente pra você.
Feliz 2006.
ACONTECEM.
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